O verniz e a madeira – O Sínodo e o matrimônio igualitário






Rev. Carlos Eduardo Calvani


O próximo Sínodo (32º da história da IEAB) está se aproximando e todos alimentam a esperança de que seja realmente um momento de caminhar juntos, tal como sugere a palavra em grego (syn – juntos;odós – caminho). O relatório dos Indabas pré-sinodais levantou diversos temas a serem abordados na reunião – catequese e formação de crianças e adolescentes; reforma administrativa da Igreja; missão e sustentabilidade das Paróquias e Dioceses; diaconia, ação social e direitos humanos; espiritualidade e formação teológica; parceria com a Diocese do Uruguai, revisão do Livro de Oração Comum e Hinário, a convocação de um Sínodo extraordinário com vistas a uma nova Constituição e cânones mais adaptados aos nossos tempos, etc. Dentre as muitas propostas, a aprovação do matrimônio igualitário, com a elaboração de um rito próprio para a bênção de casais homoafetivos.


A ata do último Sínodo (31º, em 2010) traz uma moção apresentada pela Diocese do Rio de Janeiro através de sua delegada, Revda. Jocinea Perpétuo, solicitando a nomeação de uma comissão nacional de teólogos e biblistas para elaborar estudos sobre questões relacionadas à sexualidade. A recomendação foi votada e aprovada, mas infelizmente durante esse três anos, tal comissão não foi constituída, e não sabemos os motivos”(Aprovação registrada na pg. 26 da ata: http://ieab.org.br/sinodo/wp-content/uploads/2013/10/ATAS-Sinodo-XXXI-2011.pdf . )


Ainda assim, a falta dessa reflexão bíblico-teológica não pode ser invocada agora para dizer que “a Igreja não está madura” para votar a aprovação do matrimônio igualitário. Alguns dizem que esse assunto “não é relevante” em algumas regiões. De fato, talvez em regiões culturalmente marcadas pelo patriarcalismo, machismo, coronelismo ou caciquismo, não seja interessante abrir essa temática, pois ela revelará problemas mais profundos. Isso não significa, porém, que mesmo nessas regiões e mesmo nos mais recônditos interiores, não existam pessoas homoafetivas. Algumas delas são membros da Igreja; outras, ainda acompanham de longe, esperando que a IEAB lhes ofereça uma palavra de acolhida.


argumento da falta de reflexão tampouco é convincente. Tenho acompanhado esse debate há um bom tempo e observo que já amadurecemos muito nessa temática. Quinze anos atrás, a “Resolução 1.10” da Conferência de Lambeth, ao invés de sepultar definitivamente a discussão como alguns pretendiam, suscitou debate ainda maior, com inúmeros artigos escritos em diferentes revistas e sites das Igrejas da Comunhão Anglicana trazendo profundas reflexões teológicas e éticas. Ao final das contas, a “Resolução 1.10” estimulou o aprofundamento não apenas nesse tema, mas na moldura maior da “Eclesiologia Anglicana”, estimulou a criatividade pastoral no atendimento às pessoas discriminadas, e tudo isso, ao longo dos últimos 15 anos abriu espaço e transformou estruturas em diversas regiões do mundo.


No âmbito da IEAB, nunca é demais “trazer à memória o que nos dá esperança” (Jeremias).Tivemos duas Consultas Nacionais sobre Sexualidade Humana organizadas pela Secretaria Geral e das quais participei ativamente; sofremos com as “cartas pastorais” de um bispo homofóbico; o CEA cumpriu seu papel de fomentar a reflexão teológica divulgando através do site e da Revista Inclusividade diversos artigos sobre o tema, inclusive alguns artigos desse ex-bispo posicionando-se radicalmente contra os direitos homossexuais, de modo que não há como dizer que nunca foi feita uma reflexão sobre esse assunto. Clérigos da IEAB produziram dissertações de mestrado na área e outros textos que, ao menos resvalavam nesse tema a partir de pesquisas em torno da sexualidade e questões de gênero[1] – Recordo a dissertação de mestrado do rev. Mário Ribas, “Escritura, Tradição e Razão no debate sobre homossexualidade no Anglicanismo” (UMESP, 2001), orientada pelo Revd. Jaci Maraschin e da qual tive o privilégio de participar como examinador na banca. O Revd. Arthur Cavalcanti, atual Secretário-Geral da IEAB também defendeu dissertação sobre tema correlato, intitulada “É um luxo trabalhar com religião e AIDS” (UMESP, 2010). O atual bispo da Diocese Meridional, Dom Humberto Maiztegui enfocou alguns tópicos ligados à sexualidade em sua tese de doutorado e também no artigo “Teologia da inclusão a partir de At 15,1-35 – Superando as barreiras da discriminação contra pessoas homossexuais” (Revista Estudos Bíblicos n. 66. Petrópolis, Vozes).O Rev. Elias Vergara divulgou dois importantes textos – “Que gay sou eu?”e o outro, intitulado “Quem inventou o pecado?”, termina perguntando: “e se Deus for gay?”. Editei o livro “Bíblia e Sexualidade” (Fonte Editorial, 2010), com 16 artigos sobre o tema reunindo autores de nossa e de outras Igrejas (John Spong, Dr. Brakemeier, André Musskopf, Dallmer Assis, Daniela Bessa, etc). A bibliografia é extensa demais para ser reproduzida aqui.


Há não muito tempo, os bispos Hiroshi Ito (DASP) e Celso Oliveira Franco (DARJ) divulgaram textos no antigo Estandarte Cristão e estimularam suas dioceses a refletir sobre a questão a partir de uma ótica inclusiva. Dom Hiroshi até mesmo promoveu na DASP debates a partir de estudos exegéticos de um teólogo da Igreja Anglicana do Japão (Nippon Sei ko Kai). Artigos diversos em torno dos textos bíblicos mais polêmicos (Levítico, Romanos, etc) foram distribuídos pelo CEA ou publicados em revistas especializadas (“Estudos Bíblicos” do CEBI; RIBLA, “Estudos de Religião”, “REB”, “Estudos Teológicos” da EST, etc). O Rev. Jaci Maraschin traduziu para a Fonte Editorial o livro “Homossexualidade – perspectivas cristãs” (2008); livros foram publicados por autores de outras igrejas. A Câmara dos Bispos emitiu cartas pastorais sobre o assunto, e Dom Maurício Andrade divulgou corajosamente, como Primaz, nota de apoio à decisão do STF reconhecendo as uniões estáveis de casais homoafetivos (http://sn.ieab.org.br/2011/05/12/ieab-em-respeito-a-decisao-do-stf/). Eu mesmo escrevi publiquei ao menos dois artigos sobre questões de sexualidade, homossexualidade e, parodiando Jó, “o que eu disse não vou repetir; aliás, já falei duas vezes e não tenho mais nada a dizer” (Jó 40.5).


Levanto essa breve memória para dizer que as pessoas que realmente valorizam a pesquisa teológica acadêmica séria, sabem muito bem que há, sim, reflexão e bibliografia extensa sobre questões relacionadas à sexualidade e quem acompanha a produção teológica na Comunhão Anglicana, sempre se depara com novos textos. A conceituada Anglican Theological Review publicou em 2011 (volume 93, winter, n.1) os “papers” e relatório do Colóquio “Same-sex Relationship and the Nature of Marriage”, reunindo teólogos e teólogas de diferentes linhas. O resgate dessa memória escrita é importante, pois a quantidade de material já produzido é tamanho (principalmente se compararmos com a reflexão ainda escassa de outras igrejas) que diante desse material cai por terra qualquer argumento de que “não há amadurecimento na reflexão”. Amadurecimento há; o que não há é interesse em algumas regiões de divulgar esse material nas comunidades e estimular a reflexão séria. As razões desse desinteresse podem ser múltiplas – em alguns casos pode ser homofobia internalizada e não-declarada; em outros casos é medo de que abrir claramente o debate em algumas paróquias ou dioceses provoque “escândalos” e afaste algumas pessoas da Igreja.


Esse medo também é revelador – indica que o povo ainda é tratado como ignorante e incapaz de debater um assunto sem se escandalizar, e se isso acontece, a responsabilidade continua a ser do clero que não pode abdicar ao ensino e que deveria educar e estimular a reflexão. Esse medo revela também, a triste situação da Teologia acadêmica no Brasil. Na teoria, todos concordam que necessitamos estudar e divulgar teologia; mas no momento prático das discussões, poucos se lembram de valorizar o ministério teológico e sua vocação, substituindo a argumentação teológica por preocupações políticas, ecumênicas, financeiras, etc.


Outro velho argumento para impedir a aprovação do matrimônio igualitário baseia-se na necessidade de “sensibilidade pastoral”, e esse discurso também não me convence. Sensibilidade pastoral para com quem? O número de pessoas homoafetivas na IEAB em todas as dioceses já é grande demais para que sejam desconsiderados como alvo de nossas preocupações pastorais. Nós que acompanhamos casais que vivem há anos em relações homoafetivas estáveis (alguns com filhos, biológicos ou adotivos) sabemos que são famílias com o mesmo patamar de dignidade das constituídas por casais heterossexuais. Os problemas e dificuldades são iguais. As crises no relacionamento são iguais, mas sobre esses casais pesa um fardo ainda maior que é o de viver quase que na clandestinidade em uma sociedade tão homofóbica como a nossa, e tendo às vezes que “se disfarçar” na própria Igreja. Esses casais – e seus filhos – esperam que a Igreja, legitimamente representada na pessoa dos delegados e delegadas sinodais, seja minimamente coerente com as palavras de Paulo aos Romanos: “não vos conformeis com o presente século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente…”


Outro argumento levantado pelos que pretendem evitar o debate é dizer que “isso vai dividir a Igreja”; “vai prejudicar as relações ecumênicas”, “causará transtornos na Comunhão Anglicana”, “lá no interior, a paróquia tal não vai aceitar” (observação que deveria ser complementada com a frase “porque nossa diocese não fez nada nesse tempo todo para esclarecer e dar formação ao povo”). Novamente, tais argumentos são fracos. Qualquer conhecedor mínimo de história da Igreja sabe que as Igrejas da Comunhão Anglicana nunca se esquivaram de debater abertamente certos assuntos que realmente suscitaram divisões – no auge dos debates sobre a escravidão e a discriminação racial que causaram divisões na Igreja Episcopal dos Estados Unidos, muitos também diziam isso: “reconhecer os direitos das comunidades negras causará divisão na Igreja… como ficarão as famílias proprietárias de escravos?”. Aqui no Brasil, durante os debates em torno da ordenação feminina nos anos 70, argumentos semelhantes foram utilizados: “não estamos preparados para ordenar mulheres”, “a ordenação feminina causará divisão na Igreja”, “prejudicará nossas relações ecumênicas com a Igreja Romana e as demais Igrejas evangélicas”. Essa argumentação considera apenas as relações institucionais, e não as pessoas, como se fôssemos chamados por Cristo para defender instituições ou a dar satisfações para a Igreja Romana ou às igrejas evangélicas. Dizer que “muita gente não aceitará e se decepcionará com a Igreja” também é desconsiderar o fato de que, no que se refere à ordenação feminina, até hoje (30 anos depois), ainda há lideranças que continuam sem aceitar esse avanço, e que “apenas respeitam”, mas que, se pudessem escolher, jamais veriam uma mulher de batina e estola presidindo a eucaristia. A própria presença feminina no altar já é um testemunho profético contra qualquer tipo de preconceito machista.


O argumento do “medo da divisão” é muito fraco. Se for aceito, fossilizaremos a instituição de tal modo que nada poderá ser modificado enquanto não houver consenso interno ou concordância na Igreja Romana e nas Igrejas evangélicas. Quando em 1984 foi aprovado o atual Livro de Oração Comum, houve clérigos que não o aceitaram e continuaram a utilizar o LOC antigo ainda por muitos anos. Devemos esperar quanto tempo por consenso absoluto em relação a um novo LOC ou a um novo hinário? Em relação à ordenação feminina, nos anos 70 utilizou-se no Brasil o pior e mais covarde dos argumentos: “as próprias mulheres não querem ser ordenadas”; e quando imaginei que ninguém mais usaria estratégias tão baixas atualmente, deparo-me com frases semelhantes ao final do paper “Same-Sex Marriage and Anglican Theology: A View from the Traditionalists”, publicado na Anglican Theological Review (pg. 50).


Em 2011, tão logo recebi o exemplar de ATR acima citado, dediquei-me à leitura atenta, partilhei com outras pessoas e, nesses últimos dias (dois anos depois) retornei aos textos, imaginando que um debate dessa natureza seria muito salutar também na IEAB, a partir de nossa própria realidade. O colóquio reuniu dois grupos identificados com diferentes posições: “Tradicionalistas e Liberais” (termos assumidos pelos próprios autores). Um fator extremamente positivo nesse colóquio é que as pessoas não são mascaradas. Elas assumem publicamente o que pensam. Aqui no Brasil, da última vez que tentamos organizar debate semelhante, muitos que foram convidadas para apresentar sua contribuição (a favor ou contra) se esquivaram por medo de retaliações, perda de amizades, “o que vão dizer na minha diocese”, etc… esse costume escorregadio e ensaboado de permanecer em cima do muro e dizer oi que pensa e crê é algo muito lamentável.


Nos últimos dias fiz questão de reler e estudar os diferentes posicionamentos no Colóquio publicado pela ATR. Pensei até mesmo em escrever uma resenha, mas desisti. O longo texto apresentando a visão conservadora (“tradicionalista”) é por demais intragável. A abordagem bíblica permanece cativa de um modelo hermenêutico há muito tempo superado até mesmo em faculdades amadoras de teologia. Salta aos olhos o ranço patriarcal, as críticas à hermenêutica feminista, o aprisionamento a um padrão interpretativo incoerente e contraditório que lamenta o uso de métodos anticoncepcionais e defende a “reorientação sexual”, como se o ser humano fosse um “robô reprogramado” ou um ratinho de Pavlov e desemboca na recomendação pastoral cruel e desumana de abstinência sexual e sublimação às pessoas homoafetivas. Permanece na essência dessa posição a velha argumentação da “ordem natural da criação”, incapaz de contemplar o Santo Batismo como sacramento da “nova criação”, do início de uma nova vida e de uma nova humanidade (um novo Adam) tipificado no Cristo ressurreto em quem não há mais “homem ou mulher (cromossomos XX ou XY), rico ou pobre, judeu ou gentio”. Toda argumentação do grupo que redigiu o paper “tradicionalista”, se levada às suas últimas conseqüências, visa o retorno ao passado, aos tradicionais modelos de famílias patriarcais e a uma Igreja machista, elitista e legalista. Não me admira que alguns dos seus redatores também sejam contrários à ordenação feminina.


Ainda assim, há um grande valor no fato de ATR publicar os resultados desse colóquio – todos os que leram percebem ainda duas visões em relação ao mistério da Igreja. Uma, a “tradicional”, preocupa-se com a preservação do passado; a outra com o testemunho no presente e os desafios do futuro; a primeira ocupa-se demais com a Lei e a Tradição; a segunda é mais coerente com os votos da Aliança Batismal em relação á defesa da “justiça e paz para todos, respeitando a dignidade de todos os seres humanos” (LOC pg. 187); a primeira, está orientada por uma compreensão pétrea da “ordem natural da criação” sem atentar para o processo cultural derivado da Criação; a segunda, dá atenção aos desdobramentos culturais e ambigüidades da Criação; na primeira permanece uma visão institucional de “comunhão”; a segunda advoga uma visão “mística” de Comunhão/Koinonia que tenho defendido desde o artigo “O mito da Comunhão Anglicana”[2] . A visão tradicionalista preocupa-se com a preservação da vinha; a outra, com a multiplicação das uvas e o bem que isso pode trazer; a visão tradicional, em resumo, prende-se a um conceito essencialista e mumificado da “verdade bíblica e da verdade teológica;” a segunda dá atenção às palavras das Escrituras e aos clamores da humanidade no presente, pois sabe que “A Lei mata, mas o Espírito vivifica”. Em tudo isso percebo que necessitamos de uma teologia da inclusão, fundamentada na diversidade da Santíssima Trindade, no aprofundamento dos mistérios do Santo Batismo como sacramento da Nova Criação, no aprofundamento do lema reformado “Sola Gratia” e em uma pneumatologia e eclesiologia realmente católicas. A verdadeira catolicidade está na inclusão e no reconhecimento da diversidade. Anunciar a graça ilimitada de Deus e impor limites a ela não me parece coerente do ponto de vista teológico.


Não sou delegado sinodal, mas gostaria que as pessoas escolhidas para essa nobre missão, considerassem o fato de que muitos de nossos irmãos e irmãos homoafetivos, já receberam o sacramento do Santo Batismo, estão sob a promessa da nova criação que se desenvolve espiritualmente em suas vidas; elas já comungam conosco do corpo e sangue de Cristo. Essas pessoas não podem ser tratadas como se estivessem fora da Igreja, batendo na porta e pedindo para entrar. Elas já são Igreja! Elas são parte de nossas vidas e de nossa comunhão. Elas colaboram em nossas pastorais, cantam em nossos corais e grupos musicais, ajudam a preparar o altar; algumas delas pregam em nossos púlpitos e estão em nossos altares presidindo a eucaristia; muitas delas oferecem seus dons e recursos financeiros no momento do ofertório porque acreditam que a Igreja é também o seu lar. Essas pessoas não podem ser decepcionadas simplesmente porque estamos pensando na letra da Lei ou em como tal decisão repercutirá na Igreja Romana ou nas Igrejas evangélicas. A vocação anglicana sempre foi de vanguarda e as outras igrejas certamente se espelharão em nosso amadurecimento para seus próprios processos internos em relação a esse assunto, quando chegar o tempo do seu amadurecimento.


O que dizer aos nossos irmãos e irmãs gays e lésbicas caso o Sínodo decida não aprovar o matrimônio igualitário? Sempre haverá duas alternativas, e nenhuma delas me satisfaz: a primeira seria dizer, coerentemente: “não podemos nem queremos abençoá-los; portanto, não freqüentem mais o templo, não colaborem mais com a Igreja, nem tragam suas contribuições financeiras… quando a Igreja resolver reconhecer de verdade a dignidade de vocês, nós os chamaremos de volta”; a segunda, seria praticar o “jeitinho brasileiro” que já vem sido exercitado há um bom tempo: “não podemos fazer um casamento oficial, no templo, com todos os procedimentos – proclamas, noivos, padrinhos e madrinhas, bênção das alianças e declaração, mas podemos fazer uma oração e bênção, de preferência escondidinho, na sua casa…”. Essa segunda atitude, embora pastoralmente aceitável (e todos sabemos, já é praticada em vários lugares) continua a ser preconceituosa, por retirar o caráter sacramental do rito e inventar uma “bênção” semelhante à bênção dos animais (que também não tem prescrição canônica nem litúrgica, desagrada a muitos, mas é vastamente praticada e divulgada).


Escrevo apenas pelo direito de expor minha opinião, porque amo essa Igreja e sinto-me desafiado, a partir de nossos próprios votos de ordenação, a acompanhar pastoralmente todas as pessoas sem rotulações prévias que as estigmatizem, do tipo “ele é gay… ela é lésbica”. Isso já não faz sentido para nós. Todos somos seres humanos e qualquer forma de homofobia, no fundo é humanofobia.


Não sei se este Sínodo aprovará o matrimônio igualitário. Porém, só o fato de debater abertamente e votar esse assunto, sem retaliações, já indicará um grande amadurecimento na IEAB. Posteriormente, ao menos, os clérigos que realmente acompanham pastoralmente nossos irmãos e irmãs homoafetivos, poderão dizer: “infelizmente, a Igreja diz que é inclusiva, mas não é tanto assim… vocês até podem comungar conosco, mas nós não podemos abençoar sua união”. Para muitos, certamente, será uma grande decepção, sobretudo as pessoas que têm amizade com clérigos e clérigas em uniões homoafetivas estáveis. Ao final, teremos que ser muito cautelosos ao usar a palavra “inclusividade” ou a estampar em alguns de nossos templos o versículo: “Casa de oração para todos os povos”.


Se no próximo Sínodo não houver votos suficientes para aprovação do matrimônio igualitário, muitos de nós lamentaremos, sim. Mas isso não nos afastará da Igreja, pois sabemos que esses mesmos direitos já adquiridos na sociedade civil, foram conquistados com luta, persistência e perseverança. Tal como a viúva às portas do juiz incompassivo, continuaremos a clamar por justiça, Sínodo após Sínodo, pois “não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?” (Lc 18.7)

Tempos atrás ouvi de um bispo hoje jubilado a seguinte frase: “A IEAB tem um verniz liberal sobre uma madeira conservadora”. Seria ótimo se, no momento em que a plenária do Sínodo debater esse assunto, todas as intervenções fossem gravadas e que o voto fosse aberto e declarado. Desse modo, ao menos poderíamos identificar o verniz e a madeira e compreender que somos parte da mesma construção e do mesmo edifício.


[1] Recordo a dissertação de mestrado do rev. Mário Ribas, “Escritura, Tradição e Razão no debate sobre homossexualidade no Anglicanismo” (UMESP, 2001), orientada pelo Revd. Jaci Maraschin e da qual tive o privilégio de participar como examinador na banca. O Revd. Arthur Cavalcanti, atual Secretário-Geral da IEAB também defendeu dissertação sobre tema correlato, intitulada “É um luxo trabalhar com religião e AIDS” (UMESP, 2010). O atual bispo da Diocese Meridional, Dom Humberto Maiztegui enfocou alguns tópicos ligados à sexualidade em sua tese de doutorado e também no artigo “Teologia da inclusão a partir de At 15,1-35 – Superando as barreiras da discriminação contra pessoas homossexuais” (Revista Estudos Bíblicos n. 66. Petrópolis, Vozes).O Rev. Elias Vergara divulgou dois importantes textos – “Que gay sou eu?”e o outro, intitulado “Quem inventou o pecado?”, termina perguntando: “e se Deus for gay?”. Editei o livro “Bíblia e Sexualidade” (Fonte Editorial, 2010), com 16 artigos sobre o tema reunindo autores de nossa e de outras Igrejas (John Spong, Dr. Brakemeier, André Musskopf, Dallmer Assis, Daniela Bessa, etc). A bibliografia é extensa demais para ser reproduzida aqui.


[2]http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/teologiaanglicana/o_mito_da_comunhao_anglicana_Calvani.pdf


Comentários

Postagens mais visitadas